sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Autobiografia na Música - Kim Kehl & Os Kurandeiros - Capítulo 37 - Por Luiz Domingues

O gaitista e cantor, Edu Dias havia nos convidado a participarmos de um festival de blues que estava a organizar. Aceitamos de pronto, pois seria realizado em um teatro do "CEU" (Centro Educacional Unificado), que para quem não conhece a cidade de São Paulo, explico resumidamente se tratarem de escolas com infraestrutura semelhantes às High-Schools norte-americanas e construídas em diversos bairros da periferia dos quatro cantos da cidade, exatamente para prover uma educação de maior qualidade às camadas mais humildes da população.
                      Uma parte das instalações do Ceu Jaguaré

O princípio era nobre e louvável portanto, todavia, o resultado prático se mostrava questionável, e por uma série de fatores que acho que não cabe aqui explicar, pois desvia o foco desta narrativa.

Mas apenas para entender o contexto, digo que toda unidade do "CEU", detinha quadras poliesportivas, biblioteca, e um belo teatro que por norma, era aberto para uma programação artística extracurricular, de forma a suprir a carência por arte e cultura nos bairros humildes.

Portanto, claro que achamos bom participarmos do festival, que teria o mote do Blues, ou seja, a bandeira que Edu Dias desfraldava em suas produções, costumeiramente.

Além de nós, Os Kurandeiros de Kim Kehl, tocariam também a Confraria Fusa, uma outra banda onde o nosso baterista, Carlinhos Machado tocava, Marcião Pignatari & Os Takeus, Michael Navarro Blues Band, Big Chico e Murajazz.
Uma panorâmica do teatro do Ceu Jaguaré, mas uma foto apenas ilustrativa, e não exatamente do dia desse show que eu descrevo

Com ingressos gratuitos ao público, não haveria cachê para os artistas, contudo, de minha parte e acho que de ninguém, houve reclamação ou indignação por ter sido supostamente um "show de investimento de carreira", fator que o Edu Dias jamais falaria para ninguém, por ser um produtor que também era (é) músico, portanto, por conhecer bem a falácia em que esse tipo de colocação se reveste.
                            Mais uma vista do Ceu Jaguaré

Ao contrário, todos tocaram com prazer, pois levar arte e cultura para um público carente de oportunidades, e assim ajudar a prover a inclusão, é prazeroso para qualquer artista.

Edu fez a sua parte ao alugar um PA de boa qualidade para garantir o áudio de qualidade e a iluminação seria a do teatro, simples, mas adequada ao espaço. Ele fez a sua divulgação no bairro do Jaguaré, onde tocaríamos na unidade do Ceu local e todos os artistas auxiliaram dentro de seus esquemas pessoais de divulgação.
Na minha santa ingenuidade, eu achei que um festival com tantas atrações sob o caráter gratuito, em pleno sábado no período da tarde, atrairia um grande público do bairro e mesmo sem nenhuma ilusão sobre as pessoas conhecerem qualquer uma das atrações em voga, eu esperei por um grande público, ainda que absolutamente curioso, apenas.

Cheguei ao Ceu Jaguaré antes dos demais companheiros e fazia um calor de rachar. Assim que entrei na enorme instalação e eu nunca havia visitado uma escola dessa rede CEU, fiquei impressionado. 

De fato, era grandiosa e mesmo ao não ostentar luxo no seu acabamento, as instalações lembravam as High-Schools norte-americanas e claro que eu fiquei contente por verificar esse conforto que chegara para as crianças e adolescentes carentes de bairros simples da periferia e por extensão, a atender  a comunidade do bairro, ao prover a instalação como uma autêntico centro cultural e esportivo para abrigar arte, cultura e lazer gratuito à população local. 
Naquele calor que fazia no dia, as piscinas estavam lotadas, as quadras poliesportivas também e daí, ao caminhar até o espaço do teatro, foi inevitável não imaginar que haveria de atrair um público ótimo, também.

Assim que adentrei o teatro, avistei músicos conhecidos das bandas que apresentar-se-iam, a aguardarem a vez de fazer o soundcheck.
Um comunicador de um programa de Internet (Jessé Navarro), me abordou e realizou uma rápida entrevista ali mesmo. Parecia que seria uma tarde-noite bastante produtiva.  
Teríamos a presença sempre bem-vinda e enriquecedora do ótimo tecladista, Nelson Ferraresso, que logo que chegou ao local, se colocou a conversar animadamente comigo, enquanto víamos outros artistas no palco a cumprir o soundcheck.


Porém, o soundcheck atrasou, como costumeiramente acontece em festivais e/ou shows compartilhados, e quando estava para chegar a nossa vez de passar o som, não houve mais tempo hábil para tal, simplesmente.

Na base da máxima: "vamos em frente a tocar que o técnico fará ajustes no decorrer dos shows", a primeira atração se apresentou. Tratava-se de um combo com orientação jazzistica, que executou um repertório sensacional em torno de releituras de jazz & blues, com muita técnica, mas com balanço, sem cair em virtuosismos dispersivos, o que geralmente ocorre com músicos desse tipo de orientação.

Nesses termos, eu gostei bastante da apresentação do "Murajazz", um combo formado por músicos de alto gabarito técnico e extremo bom gosto nas releituras que fizeram.

Assisti da plateia a apresentação da "Confraria Fusa", uma outra banda onde o meu amigo, Carlinhos Machado, também tocava, e apreciei também a apresentação. Pouco a ver com o mote "blues", a Confraria Fusa se dedicava ao trabalho autoral na linha do Soft-Rock, bastante agradável, por sinal. Boa banda, com músicos muito bons em sua formação e com um trabalho autoral bastante honesto.

Nessa altura, a tarde já caía e eu notava com bastante decepção que o fraco público que estava presente nas dependências do teatro não dava mostras de que melhoraria.

Entrou o "Michael Navarro Blues Band" em ação e o nível artístico no palco mantivera-se ótimo, mas o público foi decepcionante. Fui dar uma olhada na parte externa e vi a unidade lotada com pessoas a utilizarem as quadras, as piscinas e a rua também lotada com pessoas envoltas em churrasquinhos e batucadas pelos botequins. 

Foi quando a minha "ficha caiu" e eu me convenci que construir unidades de educação, arte, cultura e lazer em bairros periféricos é muito nobre enquanto iniciativa, mas a contrapartida do povo, foi péssima. Alguém lá no show, e já nem lembro quem foi exatamente para eu citar aqui o seu nome, me falou algo absurdo, mas que serviu como analogia: -"se fosse show de funk, estaria lotado"...

A banda do comunicativo guitarrista e sempre brincalhão no trato pessoal, Márcio Pignatari entrou a seguir, e além dele ser um grande guitarrista de Blues, a sua banda se mostrou, sensacional. Com um balanço incrível, pareceu que eu estava a assistir um show do guitarrista, Freddie King nos anos sessenta. Assisti da coxia, pois a próxima atração seríamos nós, Os Kurandeiros, e para tal, a banda estava agrupada, a aguardar a sua vez.  

Quando subimos ao palco e eu olhei a plateia, não havia melhorado nada o contingente in loco e ouso dizer que o grosso dos que ali estiveram sentados, eram músicos das outras bandas e convidados dos músicos que se apresentaram anteriormente.
"Sou Duro" no Ceu Jaguaré em 18 de outubro de 2014, com Edu Dias a apresentar a banda

Eis o Link para assistir no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=LwgncLxDdZo

Absolutamente salutar a postura deles em respeitarem os colegas, a assistirem em forma de prestígio e respeito, mas ao pensar no público comum, que fora o objeto motivacional pela existência do festival em si, foi muito decepcionante verificar que a comunidade não valorizara o esforço do poder público em lhes prover arte e cultura em caráter gratuito.
"A Galera quer Rock" no Ceu Jaguaré em 18 de outubro de 2014

Eis o Link para assistir no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=aVAs3Ul-Gq0  
"Pro Raul" no Ceu Jaguaré em 18 de outubro de 2014

Eis o Link para assistir no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=6JrhIOpmqK4

Portanto, essa perspectiva suscitaria muitos comentários, ao motivar uma reflexão profunda sobre a massificação da cultura, educação e expectativas, versus difusão equivocada de anticultura de massa, subcultura etc. Eu já abordei tal tema em muitas matérias minhas, publicadas em muitos blogs, e penso em fazer novas abordagens nesse assunto futuramente, pois trata-se de uma realidade multifacetada e que por conseguinte, dá margem à muitas observações análogas.
"Problemas" no Ceu Jaguaré em 18 de outubro de 2014

Eis o Link para assistir no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=0dczR-lD3DE 

"Maria Maluca" no Ceu Jaguaré em 18 de outubro de 2014, com Michael Navarro à gaita, como convidado especial

Eis o Link para assistir no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=DszULc98big

Entretanto, aqui, o que cabe acrescentar é que fiquei bastante chateado pois o teatro era todo bonito, o som e a iluminação estavam compatíveis, a produção do Edu Dias esmerou-se para fazer tudo funcionar a contento, e os artistas foram ótimos, ao darem o seu melhor no palco e sem cobrar cachê, ainda mais essa. 

O nosso show foi bem muito bom, com o som bem azeitado no palco. Demos o recado com a irreverência sempre simpática do Kim, e o público respondeu com bom humor, ainda que a pouca plateia ali presente fosse formada pelos músicos das bandas que participaram do festival, os seus convidos e respectivas equipes técnicas pessoais.
Michael Navarro fez uma participação especial em nosso show, com a sua gaita muito afiada.  

"Make it Funky Blues" com Os Kurandeiros + Marcião Pignatari acompanhando Big Chico, no Ceu Jaguaré em 18 de outubro de 2014

Eis o Link para assistir no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=C7hsJYaUpcc

A última atração da noite seria o bluesman, Big Chico. Desde alguns dias anteriores à realização do festival, já sabíamos que Os Kurandeiros haviam sido convidados para acompanhá-lo, pois este chegaria ao show sozinho, sem músicos de apoio. 

Em outras épocas, eu ficaria preocupado em fazer um show sem ensaios e nenhum conhecimento prévio que fosse, do repertório que o Big Chico tencionava apresentar. Mas nessa altura, com três anos acostumado a tocar com Os Kurandeiros, eu já não me surpreendia com o total improviso no mundo do Blues e mesmo ao errar esporadicamente, a grosso modo, não precisaria nem falar o tom da música a ser tocada, pois a dinâmica para todos ali seria de sair a tocar na base do improviso e a buscar referências sobre a harmonia; ritmo, e pulsação de cada canção, com o som em pleno andamento.

Sobre essa apresentação a acompanhar o Big Chico, eu tratei como um trabalho avulso e não como uma apresentação d'Os Kurandeiros em si. Portanto, já escrevi sobre isso no capítulo dos "Trabalhos Avulsos". 

Para saber especificamente dessa história, consulte portanto o capítulo já publicado neste Blog 2:

http://blogdoluizdomingues2.blogspot.com.br/2015/05/autobiografia-na-musica-trabalhos_22.html  

E também já publicado no Blog 3:

http://luizdomingues3.blogspot.com.br/2015/03/trabalhos-avulsos-periodo-2014-capitulo.html

A encerrar, foi muito bom ter participado do Festival: "Hoje tem Blues", a nos apresentarmos no teatro do Ceu Jaguaré, no extremo da zona oeste de São Paulo, na divisa com o município de Osasco.

Foi no dia 18 de outubro de 2014, com trinta e cinco pessoas na plateia, apenas, uma grande pena, mas o Brasil de 2014 estava assim... tudo dominado pela subcultura de massa e eu logo percebi, que a anticultura proposital seria o pilar por trás dessa condição, a se tornar intrínseca. A vida seguiu, nos coube continuar a tocar, sempre e sempre, até sermos vencidos pela inanição cultural ou vencê-la...

Continua...

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