domingo, 24 de maio de 2015

Autobiografia na Música - A Chave do Sol - Capítulo 263 - Por Luiz Domingues


Chegou a hora de falar das duas canções que permaneceram na lista da demo-tape, porém, não foram músicas nas quais depositávamos grande esperança. O meu primeiro sinal de estranheza, ao analisar tal determinação, 28 anos depois (a escrever em janeiro de 2014), é óbvio: se não eram "necessárias", para que as gravar ? 

Um outro ponto em que a nossa ingenuidade de outrora não nos deixara enxergar: se não foram canções "competitivas", o simples fato de estarem inseridas em meio às demais, não seria contraditório de nossa parte e aos olhos dos executivos das gravadoras, não poderia desabonar todo o trabalho? Pois é claro que poderia. E um terceiro aspecto: se não representavam um trunfo, para que gravá-las, a perder tempo precioso (inclusive, melhor teria sido gasto tal tempo/dinheiro, se empreendido com um maior capricho na mixagem das quatro consideradas como as mais "Pop" desse repertório)? Pois é, faltou-nos bastante a visão empresarial do negócio, e falhas assim devoravam o nosso parco dinheiro... 

E há um quarto aspecto: falo sobre estratégia, com a vivência acumulada por conta de vinte e oito anos decorridos, contudo, na época, não obstante o fato de realmente nos faltar uma visão maior naquele instante, nós não achávamos que essas duas canções fossem descartáveis totalmente. Para início, falo sobre "O Que Será de Todas as Crianças?", música que realmente detinha uma concepção mais pesada, mas que apresentava elementos interessantes em sua estrutura.

O que eu acho nocivo nela, ainda hoje, é a questão do seu andamento. Para observar o padrão Pop, é lógico se tratar de algo proibitivo. Pelo fato do riff primordial da guitarra, ter sido gravado sob um andamento tão acelerado, infelizmente este imprimiu-lhe um certo ranço em torno do Heavy-Metal, e sob um momento em que tentávamos nos livrar de tal estigma indevidamente adquirido em 1985, haveria de ser um retrocesso na estratégia, praticamente.

O riff, no entanto, era(é) muito bom, e toda a estrutura harmônica dele advinda mantinha um potencial Pop, apesar do andamento acelerado. No refrão, que também era bastante fácil para a assimilação popular, eu criei uma linha de baixo inspirada na música: "Going for the One" do Yes. Basta ouvir a nossa canção com essa informação em mente, para o leitor perceber que eu não plagiei, pois recuso-me a fazer esse tipo de prática abominável, mas claramente busquei inspiração no Chris Squire, para criar aquele fraseado em sentido rítmico do andante. Creio que tal detalhe teve o fator da amenização do conceito em não soar tão "Heavy", como a música poderia sugerir, ainda bem.

A melodia também continha um bom apelo Pop em seu bojo, e o Beto era bom para criar melodias com tal potencial convidativo. No caso da letra, esta também foi motivada pela abordagem sociopolítica, assim como "Sun City", a aproveitarmo-nos bem daquele momento de 1986. 


Mais uma vez a correr um tremendo risco, o Beto foi fundo nessa abordagem sobre o "futuro" da humanidade ameaçado por uma guerra nuclear etc. e tal. Uso o termo "risco", por que tal tema teria tudo para escorregar no tobogã da pieguice. Ao falar sobre o futuro das crianças, é claro que o pior vem à cabeça. Das declarações do Pelé, a propagandas institucionais de bancos; do ranço religioso a excesso de ingenuidade no entendimento das manobras sociopolíticas... enfim, evocar "criancinhas" é meio caminho andado para se descambar feio, e tornar um tema até interessante, em algo muito tolo. 

A chamada "guerra fria" estava nos seus últimos dias, mas naquele ano de 1986, tal paranoia institucionalizada deu os seus últimos suspiros com a perspectiva de um aquecimento na animosidade entre Estados Unidos e União Soviética. O Beto impressionou-se com o noticiário em voga e soltou o verbo, ao citar os então lideres Gorbachev e Reagan, os homens que teoricamente mantinham os seus dedinhos trêmulos sobre os perigosos botões vermelhos que acionariam as bombas nucleares. 

Até aí, tudo bem, porém, ao falar do futuro das crianças, diante da iminência do fim aniquilador do planeta, foi algo extremamente perigoso, e de fato o foi a opção escolhida por ele e pela banda. A nossa sorte, foi que a música "pegou" e doravante, tornou-se uma das mais bem sucedidas nos shows da banda no período 1986-1987.
Apesar desse sucesso comprovado por nós mesmos, não teria chance para impressionar os executivos das gravadoras, acredito, mas foi uma música importante para a banda e de fato, tenho na lembrança e também registrado em gravações preservadas em fitas K7, a performance dela em diversos shows, com a manifestação do público a cantá-la de forma entusiasmada, principalmente em meio ao o refrão, junto à banda.

Aliás, é bom registrar também, que nos shows, logo percebemos que o público embarcava fácil no ímpeto de cantar o refrão junto conosco e dessa forma, tornou-se um arranjo especial para executá-la ao vivo, que nós parássemos de tocar e assim deixar o público a cantá-la sozinho por alguns compassos, retomar o instrumental a seguir e encerrar na euforia generalizada. Só por termos uma música com tal potencial empático no repertório, já valia a pena. 
"O Que Será de Todas as Crianças?", na versão da demo-tape lançada em abril de 1986

http://www.youtube.com/watch?v=EEI8jKFgG6Y

Continua...

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