sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O Barquinho na Enseada de Botafogo - Por Marcelino Rodriguez

Quando Tomas pode ir ao Rio, seu encontro com Décio é sagrado na enseada de Botafogo, onde o segundo tem um barco de dois andares, que é simplesmente uma delícia. 

Os dois são sujeitos acima das estatísticas, porque são intelectuais, místicos e doutores, o supra-sumo da delicadeza e da profundidade em termos de gente.

Verdadeiros discípulos de Saint Martin. 

Como sabem ler e escrever corretamente, além de terem bebido dos grandes clássicos, tornaram-se de certo modo solitários no mundo pós-moderno, sobretudo Tomas, viúvo. Toda vez que se encontram Décio pergunta, ao leme:
   

 -- E ai, Tomas, Já fazem dez anos. Tá na hora de você casar de novo.
-- Deixa isso quieto, irmão. Esse mercado de amor anda muito sinistro.
-- Mas você não está interessado em ninguém?
-- Até estive, numa gordinha que tinha um sorriso lindo.
-- Pessoal ou virtual?
-- Virtual, mas ela se revelou.
--  O que foi?
-- Ah, cara, um dia ela postou na rede social : “essa merda de Igreja”. 

Fiquei apavorado. 

Uma mulher que chama a santa madre igreja de merda, de que não me chamaria dentro de casa, não é mesmo ? 


 -- Pulei fora antes mesmo de começar. Esse negócio de sorriso bonito engana a gente.
-- Nossa Senhora, nem diga. Por isso, eu parei num filho só. Pelo menos noventa por cento das pessoas que conheço dessa geração, espero não encontrar na outra margem do rio. 


Essa coisa de rede social engana muito. 

Outro dia vi o pior jornalista do Rio com um belo sorriso na cara redonda, e não sabia se ria ou chorava, parecia gente, mas é um ogro o cara. 
Tão bonitinho, tão engomado e sorrindo com a careca brilhante que pega qualquer chapeuzinho vermelho na floresta. 

Tomas, pega lá embaixo uma long neck para a gente. Vamos voltar para a paisagem que é melhor. Vamos ficar na paz de toda natureza sem gente. 
Escuta isso aqui – concluiu Décio, colocando os clássicos segundo o piano de Richard Clayderman.
 

O barco ?
 

Deslizava na baia, onde ambos recebiam o sol, o céu, o mar. O que ninguém conseguia ver, todavia, era a alegria dos anjos naquela solidão de amigos. 


Marcelino Rodriguez é colunista ocasional do Blog Luiz Domingues 2. Escritor de vasta e consagrada obra, nos traz aqui uma crônica leve, porém reflexiva.

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